Decidimos que iríamos
nos deslocar para o local do ocorrido, para fazer a pericia preliminar do
local, fotografar tudo direitinho, já que quando a equipe havia chegado ainda
tinha muita fumaça e não deu para fazer o trabalho com a perfeição que a situação
exigia. Chegando la me deparei com cenas que eu jamais imaginei que seriam possíveis
na vida real, pessoas mortas amontoadas, aos monte, sendo levadas de caminhão, e
aparecendo mais e mais e mais. Resolvi entrar na boate e la vi vários corpos
pelo chão, já organizados pelos bombeiros para serem levados, celulares
tocando, fuligem por todo lado, água pelo chão misturada a brincos, sapatos, pulseiras
sangue e cabelos. Uma cena que eu jamais poderia imaginar, pessoas jovens como
eu que tenho 25 anos, pessoas que frequentam a mesma faculdade que eu,
amontoadas, pelos cantos. Quando me aproximei de um dos banheiros, vi aquela pilha
de pessoas e me dei conta do tamanho da bronca... no momento vários palavrões passaram
pela minha cabeça, mas decidi que aquele não era o melhor momento para comoção,
pois avia um trabalho e um trabalho que exigia o máximo de minha atenção ao
ser feito. Então comecei a fotografar. Tentei ver aquilo da forma mais mecânica
possível, para evitar ao máximo
me comover, mas foi muito difícil. Quando todos os corpos foram retirados, nos
fizemos às fotos preliminares do local, pois já estava se deslocando de Porto
Alegre uma equipe especializada em incêndio para reconstruir a dinâmica do que
avia ocorrido e dali tirar o máximo
de informações possível.
Depois desse
primeiro momento, fomos para o CDM, onde estavam sendo levados os mortos.
Chegando la me deparei com uma cena tão chocante quanto a vista anteriormente. Cinco
fileiras de homens em um lado do ginásio e três de mulheres do outro lado,
colocados lado a lado com um intervalo de meio metro cada um. E agora o que
faremos? Acho que por mais profissional que se seja ninguém esta preparado para
um trabalho como este. Decidimos então o que deveríamos fazer. Fotografar cada
uma das pessoas e suas identificações. Quase 250 pessoas. E foi o que fizemos
nos dividimos em três equipes de Peritos e Fotógrafos Criminalísticos,
determinamos uma fileira para cada um e iniciamos o trabalho. Eu procurava me
concentrar no trabalho, e torcendo para não encontrar nenhum conhecido, e graças
a Deus isso não aconteceu. Acho que levamos mais de uma hora fotografando cadáveres
de jovens estendidos pelo chão. Enquanto isso, as outras equipes (policia
civil, Enfermeiros, voluntários..) desempenhavam suas funções ao nosso redor. O
perito que estava me acompanhando encontrou pelo menos três conhecidas, e eu a
cada pouco precisava tirar a mascara, respirar fundo e me concentrar, para não desistir
daquilo tudo. Por mais que eu procurava evitar pensar nisso, aquilo que eu
estava fotografando eram pessoas, jovens, com um futuro todo pela frente, que
agora não poderia mais se realizar. Mas eu respirava fundo e seguia fazendo
meus trabalho, pois naquele momento era importante que cada um fizesse sua
parte. O cansaço das noites anteriores, somados as stress causado por aquela confusão
toda, faziam os palavrões passear por meus pensamentos (puta merda, de droga
hem, fudeu geral...). Já eram 13 horas da tarde e eu estava cansado e sem comer
ainda, então resolvi que precisava pelo menos comer alguma coisa para
continuar. Voltei pra casa, comi e a ultima coisa que eu queria era voltar pra
la, quando o chefe da criminalística me ligou dizendo que a equipe de Porto
Alegre havia chegado e que eu era responsável por acompanha-los ate o local da tragédia
e dar a assistência que lhe fosse necessária. Para minha sorte o fotografo criminalístico
que veio de Porto Alegre era um grande amigo, e tinha sido meu professor no
curso de formação da Perícia.
Entre uma foto, uma medição e outra, ficamos falando de equipamento fotográfico,
perguntando dos colegas, para tentar descontrair, sempre mantendo o foco no
trabalho. Todos os que estavam presentes foram muito solícitos no momento,
Policia Civil, Militar, Federal, Bombeiros..., todos agindo da melhor forma possível
para que aquilo terminasse logo. Aos poucos fomos reconstruindo a cena da tragédia,
(que por motivos éticos e profissionais não irei descrever aqui) mas tudo
funciona como um quebra cabeça com muitas pesas a serem montadas e aos poucos
nos fomos reconstruindo os passos daquilo tudo e a sena ia se montado na nossa cabeça
como se fosse o roteiro de um filme de terror.
Já era noite
quando percebi que me corpo já não estava mais dando conta. O cansaço estava
dominando, então comecei a fazer ligações a fim de arrumar alguém para me
substituir, e dar assistência à equipe de Porto Alegre. Então um dos colegas
que estavam no CDM, disse que poderia me substituir. Voltei ao local onde avia fotografado
centenas de mortos, mas já não estavam mais todos la, pois alguns já tinham
sido liberados, levei meu colega para a boate e pude então ir pra casa. Mas de
forma alguma pude relaxar, pois apesar do cansaço não consegui dormir, ao ligar
a TV o único assunto era esse, no face book a mesma coisa, então resolvi
escrever esse breve relato para compartilhar minha experiência.
A tragédia abalou, com toda certeza, jovens de todo Brasil. Eu, com meus dezenove anos de idade, me encontrei extremamente sensibilizada com o caso. Nós que sabemos exatamente o que é receber vinte chamadas da mãe e levar uma bronca por não atender, mesmo sabendo que ela estava extremamente preocupada. Nós, que sabemos o que é deixar o namorado(a) ir a uma festa com os amigos e, no dia seguinte, esperar sua ligação perguntando se ainda estou brava. Nós, que, nesta idade estamos descobrindo a real importância dos amigos e o quanto nos doaríamos para vê-los inteiros e bem. Nós sentimos a dor de uma amiga que voltou inteira para casa mas teve de deixar outras duas para trás. Como ela vai dormir? Como vai descansar em seu travesseiro sabendo que suas cúmplices morreram empilhadas em meio a uma fumaça tão escura quanto a mancha que acompanha suas lembranças? O Brasil morreu com elas. Hoje, nossa bandeira tão cheia de cores transformou-se em uma bandeira negra. Ontem, ainda ontem, jovens como eu se foram fazendo o mesmo que eu gosto de fazer. E que, como eu, para seus pais eram somente... Crianças.
ResponderExcluirPuta que pariu
ResponderExcluirMuito triste tudo isso! Que o conforto de Deus estja conosco e com os familiares de cada um que foi vitima nessa tragedia!
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